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PARTE 1


- O que vocês querem ser quando crescer? - perguntamos.

Silêncio.

- Veterinário - disse um rapaz que se apoiava acuado em uma pilastra.

- Ué, Stéfano, cinco minutos atrás você não disse que queria ser um nóia quando crescesse?

Os jovens caíram na risada. Uma garota do grupo, rindo de forma séria, não tirava os olhos curiosos de cima da imagem que eu e Lelli parecíamos passar. Olhei em seus olhos e perguntei:

- E você, moça?

- Eu quero ser enfermeira - disse Lavínia, de 13 anos de idade.

- Eu vou me alistar! Enquadrar os meninos ai, igual os policia já fez comigo! - disse Ricardo, 16 anos.

- E como vocês pretendem realizar o sonho de vocês?

Um rapaz brincalhão apontou para Stéfano e disse:

- Ele vai ter que caçar bicho no mato!

E outro respondeu:

- Tem que trabalhar pra comprar um carro.

- Olha… - disse Lavínia com uma voz serena, enquanto mexia os braços, que mexiam seus cachos - Eu quero terminar meus estudos, correr pra pegar ônibus, vai ser cansativo? Vai. Mas tem que ir atrás, procurar um lugar onde eu possa ir e me formar. Ir atrás. Vale a pena.

PARTE 3

Seus olhos transbordavam os sentimentos do que as palavras queriam dizer. Os dedos se entrelaçavam inquietos. A pele, rígida e morena. Ombros com postura de vitória, que em certas frases se deixava afundar entre as orelhas e sorria baixinho para ninguém escutar sua alegria surreal.

Era assim toda vez que o sargento Valdo Andrea Santos contava sobre o projeto Esporte Na Base, este o qual os PM's da Base Comunitária de Segurança do Marsilac, ensinam tênis para crianças e jovens até 18 anos. Durante uma hora, uma vez por semana na ONG, policiais e moradores do distrito se unem para praticar esporte.

A ideia simples, porém transformadora mudou suas vidas. Não só a dos moradores do distrito, mas a dos profissionais fardados. O colete à prova de balas é inútil perto das bolas de tênis amarelas de tecido. O medo nos olhos das crianças é desnecessário quando o revólver esfria sobre o banco da quadra.

O projeto começou há dois anos e mostra hoje resultados incalculáveis. Além do Esporte na Base, a Base Comunitária promove atividades físicas para as idosas do distrito, que caracteriza mais da metade da população da região. Porém, nem tudo foi as mil maravilhas desde o início. O sargento Santos teve a iniciativa que só existe naquele distrito e para executá-la, levou a ideia para o tenente que poderia abraçá-la e recebeu um redondo não como resposta.

"Ele negou porque se não o sargento ia ficar mais famoso, eles só quer saber de status", alegou um dos funcionários da ONG, que sabia da história. Ainda com o desejo de executar o projeto, Valdo aproveitou a troca de capitães e passando por cima do tenete na hierarquia da polícia militar, jogou as palavras para o novo capitão que as pegou no ar e pragmaticamente aceitou a proposta.

"Eu criei inimigos", conta o sargento apertando os lábios, escondendo as lágrimas atrás da armação dos óculos. “Você vai encontrar pedras no seu caminho e essa pedra é, inclusive, importante para você dar valor ao que você acredita. Porque se tudo fosse fácil, a gente não daria valor”.

Mas o ressentimento se dissipa logo que o sargento, entre um gole e outro de café, conta com um sorriso aliviado de orelha a orelha - digno de quem tem consciência de que está servindo de exemplo para alguém - sobre os policiais Guatemaltecos que vieram ao Brasil, mais especificamente a Marsilac, para aprender mais sobre o projeto, pois o intuito era voltar com inspiração para implantarem um sistema semelhante na Guatemala.

Marsilac chegou à Guatemala, mas ainda não no centro de São Paulo. Por que? Quando se pensa em criminalidade, são nitidamente díspares as visões que a população tem em relação à polícia no centro de São Paulo e regiões mais próximas, comparado a Marsilac. Nos arredores do centro da cidade, a polícia é vista por parte da população na horas de manifestação popular como a inimiga, e que, mesmo assim, deve cumprir com sua obrigação de estar presente defendendo a população em qualquer outra situação. Já em Marsilac, os policiais são realmente tratados como professores, em que a população pode contar até para denunciar o bandido mais perigoso do bairro sem precisar se preocupar mais tarde.

Além de terem conquistado a confiança das crianças e jovens do bairro, tratam e são tratados com respeito, de igual para igual - o que em uma constatação superficial, parece se tratar de um ponto fora da curva -, ainda que com o devido respeito necessário a uma autoridade cujo trabalho de punir será feito quando for preciso.

“Essa criança que hoje abraça a gente, poderia vir a ser um dos maiores criminosos, um dos maiores traficantes vendendo drogas ali no bairro. E aí como ele se aproxima de mim, ele se afasta da criminalidade”, disse o sargento.

Enquanto o oficial nos oferecia seu discurso orgulhoso, atrás dele, uma cena curiosa chamava atenção. De um lado da mesa de ping-pong, também no refeitório da ONG, o soldado Eduardo estava vestindo um conjunto esportivo da adidas, cor azul-turquesa, e por cima, o colete da PM. Do outro, com a raquete na mão, Ricardo Ribeiro, um adolescente de 16 anos que participa da ONG. Depois de alguns minutos de jogo, o PM tirou o colete à prova de balas e encarnou um atleta olímpico.

O jovem festejava a cada ponto e sentava contrariado a cada perda, esperando chegar novamente a sua vez. Nos intervalos da partida, vestia o colete do soldado e desfilava pelo refeitório com o peito estufado e um sorriso torto no rosto. Ainda atrás dessa cena, a porta do refeitório formava uma bela fotografia, com montanhas arborizadas ao fundo, cortadas por aglomerados de casas de bloco e varais de roupa infinitos. Uma neblina branca e densa cobria a paisagem e uma garoa fina, que impedia a aula de tênis daquela tarde acontecer, molhava o pé da porta, cujo batente é protegido por uma cruz de madeira que se vê de longe para quem chega no portão da ONG. O refeitório é uma igreja que funciona somente aos finais de semana, cuja salvação acontece todos os dias, com ou sem missa.

Enquanto conversávamos com o sargento, e o soldado compartilhava risadas e trocas de passes com os jovens ao fundo, uma moça que estava sentada à mesa conosco, ouvia tudo atentamente com um sorriso discreto - mas daquele tipo que não sai nem por mais que você queira disfarçar.

Esta era Ilda Nunes, a assistente social com a missão de identificar os sonhos particulares de e encorajar cada criança a segui-los por meios que ela consiga alcançar o que deseja. A surpresa de conversar com Ilda foi a abertura com que contava de cada caso, cada profissão almejada pelas crianças.

Sua felicidade se fazia presente em cada ruga no canto do olho, deixando em evidência as palavras que saíam por sua boca marcada pelo tom metálico do aparelho em seus dentes. Seus cabelos negros tremelicavam quando ela virava para chamar alguns jovens, os convidando a vir contar o que querem ser quando crescerem. Deixando os envergonhados jovens de lado, Ilda voltou com os cotovelos para a mesa, buscou na memória as palavras e num impulso, nos contou sobre o pequeno Lucas.

“Eu perguntei né pra ele o que ele queria ser. 'Engenheiro civil, tia'. Engenheiro, eu pensei, mas por quê, eu perguntei. E ele disse ‘Porque eu quero fazer uma casa para a minha mãe. Uma casa boa e bonita para ela’. Muitos dos sonhos deles aqui, são pensando na família... Depois eu ainda perguntei se era só por isso e, ‘Não, tia. Eu também acho bonitos os prédios que tem lá na cidade, quando vou para lá acho tão lindo”. Os olhos de Ilda brilharam.

PARTE 2

Tínhamos acabado de chegar em Marsilac. Paramos para descansar, recarregar de água a garganta e de memória a câmera fotográfica. O banco de madeira, ficava sob uma goiabeira, cujas raízes se equilibravam no barranco ao nosso lado. Sentindo o vento frio que cortava nossos rostos como navalhas, paramos para observar a paisagem.

De costas uma para a outra, eu observava a rua e Lelli, o vale cortado pela linha do trem, inaugurada em 1935 por José Alfredo Marsilac, um engenheiro que deixou seu nome de herança para o distrito após construir o ramal Mairinque-Santos, mesmo depois ter perdido quase toda a visão por estilhaços de bomba na Revolução de 1932.

No rua, caminhavam um homem de moletom vermelho, encapuzado, bermuda preta de tactel e chinelo de borracha. Ao seu lado, uma criança vestindo com um moletom vermelho com capuz, calça preta, e nas mãos, arrastava uma mochilinha, cujas rodinhas penavam em deslizar no asfalto esburacado.

Aquela rua levava ao início do bairro, à direita, direção que seguiam o homem e o menino vestindo a mesma roupa. No trajeto, de ambos os lados, via-se casas cujas portas davam na calçada. Algumas coloridas, outras sem acabamento. Carros estacionados bloqueavam o fluxo da rua. Fluxo de, no máximo, um veículo a cada cinco minutos. Nós contamos.

Nas poucas esquinas que cortam a principal, senhoras conversavam sentadas nos degraus da calçada. Mais adiante, apoiados na mureta de um bar, um grupo de homens bebia cerveja e escutava algo que falava sobre amor no batuque distante de um pandeiro, som que competia com o canto dos pássaros vindo de todos os lados. Voltando o olhar para perto, uma vendinha à frente oferecia objetos com funções distintas. Vassouras coloridas dividiam espaço com rodos em um grande tambor e cobriam as caixas de ovos, empilhadas sobre um balcão de vidro. Dentro dele, as prateleiras deixavam à mostra fileiras de sabonetes, adesivos de caderno, perfumes fora da caixa e brinquedos de plástico.

Lelli cortou minha digestão mental com uma interjeição. Observando para lá do barranco, viu em um terreno, uma silhueta curiosamente girando no ar. Cerrando os olhos,  tentávamos decifrar o que era aquele corpo pendurado. Lelli concluiu: "é um espantalho!". Aliviadas, nos angustiamos de novo. A última vez que qualquer uma de nós viu um espantalho, foi… Nunca. No terreno havia três.

A região com 8 mil habitantes e 200 km², tem oito vezes menos moradores e vinte vezes mais o tamanho do distrito de Moema. Dividido em quatro bairros, o distrito de Marsilac é o último ao sul da cidade de São Paulo. Grande parte da sua área é de preservação ambiental e para se chegar lá, do terminal grajaú, o tempo de trajeto demora por volta de uma, a duas horas (reportagem em áudio).

A distância não seria um grande problema, se os moradores não precisassem sair de lá. Não há farmácia, mas tem uma escola. Não há hospital, mas funciona uma Unidade Básica de Saúde. Não há supermercado, mas a família Bertini abriu um empório que vende desde carne até sapatos.

Há uma quadra, mas lazer, só as cachoeiras que ficam há quilômetros de distância do centrinho de Marsilac. Ou a lanchonete que fica aberta sábado a noite, que seu Ariovaldo, 43 anos, afirmou levar a família para passear.

Deixando para trás o susto dos espantalhos, seguimos em direção ao Centro das Crianças e da Juventude. Caminhamos pela rua principal, que na primeira curva, já transformava o asfalto cinza em terra vermelha. Ouvia-se o som da buzina do trem.

No Centro, carinhosamente apelidado de ONG pelos moradores, profissionais instruem crianças e adolescentes, e os mantém ocupados com diversas atividades, de segunda a sexta, implantado pelo Governo, funcionando há dez anos. Chegando ao portão, nos deparamos com um muro em obras, exercício prático de um do curso de pedreiro, um dos únicos profissionalizantes de Marsilac. Do outro lado, depois do arame farpado, vacas originariamente brancas com manchas pretas pastam no terreno em desnível. Da entrada, é possível ver dois prédios, um deles branco com uma cruz de madeira na entrada, uma quadra, ao fundo uma horta extensa, que vai até o final do terreno e uma mureta colorida que faz a curva com os olhos.

Entramos. A casa com a cruz era na verdade o refeitório da ONG. Em pouco tempo, nos vimos no meio de um grupo de jovens que no dia nublado, tentavam se manter ocupados.

Por onde anda marsilac

Reportagem de Ana Azevedo, Ana Beatriz Issler e Andressa Lelli

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